Quais são as causas do autismo? O que são migração e poda neural?
O Transtorno do Espectro Autista é um entre outros transtornos do neurodesenvolvimento. Esses são decorrentes de alterações ocorridas durante o desenvolvimento do sistema nervoso central ainda durante a gestação, com extensão à infância.
Podemos citar como distúrbios do neurodesenvolvimento, além do transtorno do espectro autista (TEA), o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), os transtornos de aprendizagem (estes incluindo dislexia, discalculia e disgrafia, dentre outros) a deficiência intelectual e a síndrome de Rett.
Especificamente em relação ao TEA, sabe-se que ocorre um distúrbio na migração neuronal e um excesso nas sinapses entre os neurônios, na maior parte das vezes decorrentes de alterações genéticas, mas também podendo ser mediadas pela exposição do cérebro em desenvolvimento a medicamentos (ex.: ácido valpróico) utilizados pela mãe ou ainda por infecções ocorridas no período intrauterino (ex.: rubéola).
Estudos mais recentes têm mostrado um papel maior da predisposição genética do que da exposição a substâncias durante a gravidez e vamos conversar sobre esse tema em um artigo posterior.
A migração neuronal
Para entender a importância da migração neuronal normal, vamos voltar um pouco no tempo. Todo o organismo do feto será formado a partir de uma célula única, o zigoto, fruto da união de um espermatozoide e um óvulo. Essa célula vai se dividindo progressivamente e, por volta da terceira semana de gestação, forma-se a placa neural, que vai dar origem ao tubo neural. Da quinta a sexta semana intraútero, haverá a formação do cérebro.
O cérebro é uma estrutura extremamente complexa, com tipos diferentes de células e áreas com funções altamente específicas, estando longe de ser um órgão formado de forma aleatória. A migração neuronal é o processo pelo qual as células do sistema nervoso - originadas em áreas distantes - vão se deslocando até seu local final em uma precisão que determinará o funcionamento adequado do órgão. As células da glia radial - também presentes no cérebro - atuam como andaimes, servindo como guia para a movimentação dos neurônios.
Células da glia radial (verde) servindo de guia para os neurônios (vermelho) migrarem. Adaptado de Malatesta, Paolo and Magdalena Götz. “Radial glia – from boring cables to stem cell stars.” Development 140 (2013): 483 - 486.
Ao longo do córtex cerebral, os neurônios também vão se organizando em camadas. No caso do transtorno do espectro autista, há uma alteração na distribuição desses neurônios nas subcamadas corticais. Esses defeitos na migração neuronal levam à presença de determinado tipo de neurônio numa parte do cérebro onde normalmente eles não são encontrados.
Esses erros de localização interferem no funcionamento de vários circuitos cerebrais e têm um papel importante na origem de vários transtornos do desenvolvimento neural, como a epilepsia, a deficiência intelectual, a dislexia, e o transtorno do espectro autista.
A poda neural
Conforme os neurônios vão se organizando, eles vão estabelecendo sinapses entre si. Chamamos de sinapse as conexões que os neurônios fazem entre si. É a partir delas que as células nervosas se comunicam, resultando na complexa capacidade de processamento do cérebro.
O nosso cérebro possui maneiras de otimizar seu funcionamento, uma delas é a eliminação neurônios - em um processo conhecido por apoptose neuronal - , outra é a remoção de sinapses que têm pouca utilidade - a chamada poda neural ou neuronal - e reforçar as conexões que tenham maior importância. Uma teoria afirma que a poda neural ocorra para reduzir o consumo de energia do cérebro, direcionando nutrientes para outras regiões do corpo.
Em que momento do desenvolvimento a poda neural ocorre?
Estudos mostram que a primeira poda ocorre ainda no útero como parte do desenvolvimento normal do sistema nervoso central, entretanto, do ponto de vista clínico, se considera a poda neural ocorrida após o nascimento, mais acentuadamente por volta dos 2 anos de vida. Em suma, a poda neuronal ocorre em todas as crianças, mas é disfuncional naquelas com autismo. Nessas crianças com TEA, nesse período, pode ocorrer a eliminação de sinapses importantes, com consequente regressão no desenvolvimento, com perda de habilidades já adquiridas. A criança pode, por exemplo, deixar de falar mesmo se já vinha pronunciando as primeiras palavrinhas, parar de fazer gestos como mandar beijo, dar tchau, ou ainda passar a recusar alguns tipos de alimentos que já vinha aceitando (seletividade alimentar).
Outro fenômeno pode ser a manutenção de sinapses não funcionais, ocasionando em um cérebro com mais sinapses do que o necessário, tornando-o muito reativo aos estímulos do ambiente como intolerância à luz, sons, cheiros, temperatura ou ao contato físico, por exemplo. O contato visual - com as inúmeras informações captadas pela visualização do rosto humano - também pode gerar desconforto nesses casos, fazendo com que a pessoa com autismo converse com o olhar desviado para baixo ou para os lados.
Os parâmetros que determinar quais neurônios e sinapses serão alterados são o chamado “use it or lose it”, em que conexões que não sejam utilizadas serão eliminadas, e o “neurons that fire together, wire together”, em que sinapses que sejam repetidamente estimuladas são reforçadas, ficando cada vez mais fortes. Portanto, as habilidades perdidas com a poda neural desregulada podem ser readquiridas com terapias iniciadas assim que seja suspeitado do transtorno, com maior efetividade nas que envolvem a imitação e a repetição, justamente com o intuito de reforçar essas conexões.
No próximo texto, vamos abordar quais outras condições de saúde podem estar associadas ao transtorno do espectro autista.